Ana Paula Beck da Siva Etges, Eng, Ph.D
Carisi Anne Polanczyk, MD, ScD
Com o avanço do acesso às tecnologias que permitem monitoramento em tempo real de hábitos de vida e resultados acerca do estado de saúde, o termo 'dados de vida real ou dados de mundo real (RWD)' passou a incorporar as terminologias relacionadas à definição de políticas de saúde populacional.
Nos processos de incorporação de novas tecnologias de saúde, o estabelecimento de acordos de remuneração baseados em resultados, de forma centrada no paciente, e a busca contínua pela adoção de RWD com segurança tem crescido globalmente. Se trata de conceitos relativamente recentes, tendo sido apenas em 2016 tema editorial do NEJM (1) e, em 2017, do JAMA (2), mas com ágil disseminação pelo mundo frente à relação que possui com os avanços de tecnologias que permitem monitoramento, a nível de indivíduos, da rotina de vida. Todavia, ainda há dificuldade na compreensão do que representa o uso de RWD e como sua aplicação para gerar evidências de mundo real (RWE) pode inovar ou aprimorar o sistema de saúde (3).
A literatura converge em conceituar que RWD retratam o estado de saúde e/ou cuidados de saúde de um indivíduo e que podem ser gerados ou coletados em qualquer momento ao longo da jornada de cuidado, seja a partir de registros eletrônicos de saúde, bancos de dados de administrativos, werables, aplicativos digitais e qualquer outra fonte digital. (2) Eles são a fonte principal para gerar RWE, as quais indicam os potenciais benefícios ou riscos de uma intervenção ou tecnologia em saúde. (4)
Com a aceleração da disponibilização de tecnologias digitais, como por exemplo os registros eletrônicos de dados clínicos e grandes bases de dados dos sistemas de saúde, o acesso a RWD passou a ser facilitado e de menor custo, tornando promissora a geração de evidências de forma ágil com base no comportamento de milhares de pessoas. (3) Esse avanço a partir do uso de dados de múltiplas fontes e com granularidade que retrata a rotina dos indivíduos está revolucionando a acurácia de avaliações, como por exemplo, da indústria farmacêutica em submeter novas tecnologias aos órgãos regulamentadores que passa a ter a oportunidade de gerar pareceres técnicos baseados em dados que representam a realidade da população em uso das novas tecnologias, reduzindo limitações conhecidas de ambientes controlados de pesquisa. Não somente no estágio de incorporação, mas com maior intensidade na capacidade de ser monitorado o real efeito das tecnologias no estado de saúde populacional ao longo do tempo.
Para os órgãos reguladores, como o Food and Drug Administration (FDA), essa nova era do conhecimento representa uma oportunidade inovadora e promissora à sustentabilidade dos sistemas de saúde, o que motivou a publicação recente pelo FDA de um framework para guiar o uso de RWD e RWE no processo decisório de tecnologias em saúde. (5) Esse documento tem também o objetivo de orientar a regulação e controle de uso de técnicas de RWD em pesquisas e na gestão de organizações de saúde.
As tecnologias que proporcionam a geração de RWD também impactam o acesso às informações que a população possui sobre o seu próprio estado de saúde e, consequentemente, sua proatividade em auto cuidar-se. (6) No campo das doenças cardiovasculares, por exemplo, a Apple em conjunto com a Universidade de Stanford, desenvolveu o estudo com maior inclusão de pacientes em curto espaço de tempo da história: em 9 meses, 419 mil pacientes integraram a população de uma pesquisa que almejava avaliar se o Apple Watch poderia ser utilizado como uma tecnologia para a identificação de arritmia cardíaca fibrilação atrial e, consequentemente ser utilizado como uma ferramenta oportuna para o diagnóstico precoce de doença cardiovascular. (7) Os resultados foram promissores: dos 0,5% de pacientes que receberam notificações de irregularidade na frequência cardíaca, 84% confirmaram diagnóstico de fibrilação atrial. Quando analisados somente indivíduos com mais de 65 anos, o percentual de notificação de irregularidade foi de 3,2%. (8)
Em iniciativas hospitalares, o conceito está proporcionando a avaliação de como a implementação de tecnologias digitais corroboram com o incremento de valor em saúde. As digital-care pathways, que contemplam o monitoramento simultâneo de desfechos de saúde reportados pelo pacientes (PROMs), que são RWD, começam a somar casos de sucesso na literatura, principalmente nos campos da oncologia e cirurgia. Na linha de cuidado do câncer de pulmão, a adoção de uma rotina de monitoramento pro-ativo de PROMs de forma digital e com interação direta entre os profissionais de saúde e pacientes, através de um aplicativo, resultou em menor mortalidade, visitas à emergência e internações. O estudo também demonstrou que a percepção dos médicos sobre o estado de saúde dos pacientes difere consideravelmente de como os pacientes se auto declaram. Resultados como esses são gatilhos que começam a demonstrar o poder que há no uso de RWD para direcionar políticas de saúde mais sustentáveis e centradas nas reais necessidades dos indivíduos. (9)
Apesar dos sinais relatados sobre o impacto positivo que a adoção de RWD e RWE representam na capacidade de inovar e gerir os sistemas de saúde de forma mais eficiente e centrada nos pacientes, ainda são vários os desafios para que haja uma estratégia estabelecida e aceita sobre o uso de RWD e RWE no mundo. Para que a mudança sistêmica e estratégica em nível global acerca da usabilidade de RWD se estabeleça, é necessário haver confiança e transparência sobre como essas evidências estão sendo geradas e o que representam em cada contexto.
A agilidade e facilidade de geração de dados ao mesmo tempo que permite a condução de avaliações de dados de milhões de pessoas em curto espaço de tempo, pode ser perigosa se utilizada de forma inadequada ou ferindo aspectos éticos e regulatórios fundamentais. Por isso, entre os principais pontos de desafio sobre a disseminação e aceitação de uma cultura de uso de RWD e RWE está a relação entre confiança, transparência e rigor metodológico. (4)
Enquanto a comunidade científica e a população têm dificuldade em confiar devido à falta de transparência metodológica no que está sendo reportado como resultado, é intrínseco ao ser-humano a imposição de uma barreira para a adoção de uma inovação. Por isso, iniciativas que corroboram com a conscientização da comunidade científica, gestores e órgãos reguladores de saúde e, sequencialmente da sociedade, podem servir como um elo estratégico para o estabelecimento de uma cultura de RWD e RWE nos sistemas de saúde do mundo.
Com esse propósito, a 'RWD Latam Initiative' está sendo lançada e, ao longo do ano de 2022 mensalmente conteúdos em formato escrito e de Webinars elaborados com o objetivo de traduzir ao contexto dos sistemas de saúde da América Latina o que representa a adoção de RWD e RWE à gestão dos sistemas de saúde serão compartilhados para livre acesso à sociedade.
Essa resenha marca o início do programa e abaixo estão listados os temas que serão abordados para que todos os interessados possam planejar o engajamento pessoal e de suas equipes na iniciativa, colaborando com a capacidade inovativa e de transformação do sistema de saúde local.
'RWD Latam Initiative'
Maio 2022 - Uso de dados de vida real e geração de evidências de mundo real: o que representam na gestão do sistema de saúde?
Junho 2022 - Diretrizes sobre o uso de dados de vida real em avaliações de tecnologias em saúde
Julho 2022 - As bases de dados existentes no SUS e na saúde suplementar
Agosto 2022 - O uso de wearables como um instrumento para a geração de dados de vida real para a gestão da saúde populacional
Setembro 2022 - Desafios tecnológicos e organizacionais para a adoção de uma cultura do uso de dados de vida real em saúde
Outubro 2022 - O uso de evidências de vida real na prática clínica
Novembro 2022 - Iniciativas de projetos aplicados em andamento no Brasil
Uma iniciativa promovida pela Roche Produtos Farmacêuticos do Brasil.
Referências:
Sherman, R. E., Anderson, S. A., Dal Pan, G. J., Gray, G. W., Gross, T., Hunter, N. L., ... & Califf, R. M. (2016). Real-world evidence—what is it and what can it tell us?. New England Journal of Medicine, 375(23), 2293-2297.
2. Jarow, J. P., LaVange, L., & Woodcock, J. (2017). Multidimensional evidence generation and FDA regulatory decision making: defining and using “real-world” data. Jama,318(8), 703-704.
3. Basch, E., & Schrag, D. (2019). The evolving uses of “real-world” data. Jama, 321(14), 1359-1360.
4. Orsini, L. S., Berger, M., Crown, W., Daniel, G., Eichler, H. G., Goettsch, W., ... & Willke, R. J. (2020). Improving transparency to build trust in real-world secondary data studies for hypothesis testing—why, what, and how: recommendations and a road map from the real-world evidence transparency initiative. Value in Health, 23(9), 1128-1136.
5. US Food & Drug Administration. Framework for FDA’s Real-World Evidence Program.
Published December 2018. Accessed March 20, 2019.
6. Stern, A. D., Brönneke, J., Debatin, J. F., Hagen, J., Matthies, H., Patel, S., ... & Goldsack, J. C. (2022). Advancing digital health applications: priorities for innovation in real-world evidence generation. The Lancet Digital Health, 4(3), e200-e206.
7. Turakhia, M. P., Desai, M., Hedlin, H., Rajmane, A., Talati, N., Ferris, T., ... & Perez, M. V. (2019). Rationale and design of a large-scale, app-based study to identify cardiac arrhythmias using a smartwatch: The Apple Heart Study. American heart journal, 207, 66-75.
8. Perez, M. V., Mahaffey, K. W., Hedlin, H., Rumsfeld, J. S., Garcia, A., Ferris, T., ... & Turakhia, M. P. (2019). Large-scale assessment of a smartwatch to identify atrial fibrillation. New England Journal of Medicine, 381(20), 1909-1917.
9. Demedts, I., Himpe, U., Bossuyt, J., Anthoons, G., Bode, H., Bouckaert, B., ... & Verbeke, W. (2021). Clinical implementation of value based healthcare: Impact on outcomes for lung cancer patients. Lung Cancer, 162, 90-95.
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