Alessandra Menezes Morelle, MD, Ph.D
Ana Paula Beck da Silva Etges, Eng, Ph.D
Carisi Anne Polanczyk, MD, Sc.D
Leandro Zimerman, MD, Ph.D
A adoção de tecnologias digitais que permitem o monitoramento de dados de saúde em tempo real dos indivíduos tem proporcionado que médicos, pacientes e familiares tenham acesso ao estado de saúde de cada indivíduo ao longo da rotina do dia-a-dia. Por um lado, a informação individualizada oportuniza o entendimento preciso do estado de saúde; por outro, desafia profissionais e cientistas sobre como estabelecer uma comunicação e conduta clínica que concilie as evidências científicas e a facilidade com que cada indivíduo tem acesso aos seus dados. A consciência de que dados de vida real são fonte de geração de evidências de mundo real, mas individualmente requerem cautela para o uso no direcionamento de uma conduta clínica, é clara para a comunidade científica, mas para a sociedade passou a acarretar adaptações nas relações entre profissionais de saúde e pacientes. O desafio é como avançar com o uso dessas informações para melhorar o bem estar e a saúde das pessoas de modo ético e seguro. A dúvida sobre qual o limite do uso de forma benéfica para o indivíduo, provavelmente será respondida nos próximos anos, mas para isso precisamos conversar com todas as partes (i.e. profissionais de saúde, sociedade e pacientes) sobre o que é o uso eficiente de dados de vida real na prática clínica.
A inovação ágil de tecnologias fez com que muito rapidamente qualquer indivíduo em uso de um wearable passasse a ter acesso a dados simples, mas significativos sobre a sua saúde. Parte de avaliações que contemplam consultas de rotina à atenção primária e ao cardiologista, por exemplo, passarem a estar automaticamente sendo feitas e reportadas ao indivíduo; de repente a detecção de uma possível arritmia passou a ser um sinal de alerta no smartphone. Entre pacientes oncológicos, o monitoramento diário do estado de saúde do paciente em tratamento e a facilidade de inclusão de amostras mais heterogêneas do que em ensaios clínicos em avaliações de novas terapias, também são exemplos de como as tecnologias estão sendo disruptivas no sentido de tornarem mais fácil e ágil a geração das informações de saúde. O ponto de discussão para transformar essa informação acurada, e fácil de ser coletada, em um gatilho para a entrega de uma prática clínica mais eficiente está em estabelecer o COMO melhor usar os dados que relatam a rotina dos indivíduos, as evidências de mundo real e a relação entre pacientes, médicos e órgãos reguladores de saúde.
Na comunidade oncológica existe um interesse crescente no uso de dados do mundo real para abordar questões relevantes para o estabelecimento de diretrizes terapêuticas que não podem ser respondidas com os tradicionais ensaios clínicos randomizados. Além disso, vários estudos apontam que o acompanhamento ativo dos pacientes em tratamento oncológico é fundamental para aprimorar a capacidade dos oncologistas e dos centros de referência de monitorar proativamente os pacientes em tratamento.
Os registros de câncer na primeira metade do século 20 permitiram descrições iniciais da incidência de câncer. Na década de 1990, os investigadores começaram a incluir informações sobre o tratamento e resultados do tratamento, de modo que a oncologia foi uma das áreas pioneiras a adotar o uso de RWD como fonte par geração de evidências. Um dos marcos dos anos 90 neste avanço, foi a união de bases hospitalares de RWD com registros nacionais de câncer nos Estados Unidos e no Canadá. Desde então, a maioria dos estudos oncológicos publicados com RWD inclui uma combinação de dados de registros de câncer, registros de tratamento, cobranças de seguros de saúde e mais recentemente de wearables e prontuários eletrônicos hospitalares. O uso deste tipo de dado tem proporcionado o alcance de direcionamentos importantes e inovadores para a prática clínica.
Em um estudo de 2018 (1), usando prontuários eletrônicos de clínicas da rede Flatiron Health descreveu os resultados de pacientes com câncer de pulmão não pequenas células (CPNPC) tratados com nivolumab e pembrolizumab na prática diária. Este estudo incluiu variáveis prognósticas importantes, como tabagismo e biomarcadores relevantes (incluindo células programadas morte 1 ligante 1 (PD-L1), EGFR ou ALK) não comumente disponíveis em fontes anteriores de dados que foram essenciais para os resultados alcançados.
Outro diferencial destes estudos recentes que têm utilizado RWD está a inclusão de populações mais heterogêneas. Usando como exemplo o estudo do pembrolizumab, que revelou uma idade mediana mais alta no início do tratamento e uma proporção maior de pacientes com mais de 75 anos, a percentagem de pacientes negros excedeu a de pacientes asiáticos.(1) Essa característica é valiosa para que os resultados dos estudos tenham maior abrangência na população global. Em outros exemplos, a inclusão de subpopulações de pacientes com acesso limitado a centros de referência tem gerado contribuições importantes para o estabelecimento de diretrizes. No Brasil, o Estudo AMAZONA III/GBECAM 0115, coletou dados prospectivos de pacientes com câncer de mama de várias instituições em todo o país de 2016 a 2018. Um total de 2.950 pacientes foram incluídos no estudo. A idade mediana no diagnóstico de câncer de mama no Brasil é de 53,9 anos, o que é cerca de 10 anos mais jovem do que nos EUA e outros países desenvolvidos. As pacientes tratadas no SUS e pacientes não brancas tiveram maior prevalência de estádios II-III da doença no momento do diagnóstico. A idade média no diagnóstico não foi diferente entre as diferentes raças das pacientes. Isso pode ser reflexo do menor rastreamento de mamografia no ambiente público (53% versus 23% de câncer de mama detectado por triagem na configuração privada e pública, respectivamente). As descobertas do estudo AMAZONA fornecem uma importante percepção da existência de desigualdades relacionadas ao câncer no Brasil. (2)
No que diz respeito à capacidade de monitoramento contínuo, proativo e acurado do estado de saúde dos pacientes em tratamento pelos centros de referência e profissionais de saúde, os aplicativos e werables tem ganhado espaço. No Brasil, a Thummi (thummi.global) é um exemplo de solução de base tecnológica que tem facilitado a comunicação entre pacientes, familiares, profissionais de saúde e centros de referência. Em um aplicativo disponível para Android e iOS os pacientes podem registrar o que sentem durante seu tratamento de uma forma estruturada, baseada nos critérios comuns de toxicidade (CTC V 4). Conforme o que o paciente registra, a ferramenta informa imediatamente quanto a gravidade de cada sintoma, oferecendo orientações sobre a necessidade de procurar atendimento imediato ou não. Na outra ponta, as equipes de saúde podem monitorar seus pacientes em tempo real e interagir proativamente com seus pacientes através de um serviço de mensagens entre o painel da equipe e o aplicativo do paciente. Além da interação imediata, o painel possibilita o acompanhamento do comportamento de toda população de uma instituição em tempo real, como da figura abaixo:
Em 2020 os resultados gerados pela Thummi foram apresentados no Simpósio de Câncer de Mama de San Antonio, relatando que a insônia foi a queixa nível 3 mais reportada por pacientes com câncer de mama. Na ocasião, 281 pacientes com câncer de mama haviam instalado o aplicativo de forma espontânea.(3) Esse tipo de iniciativa contribui com o entendimento das jornadas dos pacientes, de modo que pode ser aliado para a identificação de oportunidades de redução de desperdícios além de ser uma rica fonte de dados para pesquisas clínicas.
Na cardiologia o uso de RWD também começou cedo a produzir evidências que aproximaram o conhecimento gerado com os ensaios clínicos randomizados com a população em geral. Os países europeus, como Suécia, Noruega, Finlândia, entre outros, implementaram registros de saúde informatizados abrangentes e detalhados nos anos 2000, colocando os mesmo em posição destaque em estudos de efetividade comparativa e evidências de mundo real. Esses registros de países com sistema de saúde universais têm permitido comparar a efetividade das terapias para toda a população, salientando resultados esperados e alguns diversos.
Mas além dos dados estruturados de prontuários eletrônicos ou base de dados administrativos, outros dados são passíveis de serem captados. Vários dispositivos móveis (mobiles, wearables e biosensores) disponíveis permitem monitorar dados como batimento cardíaco, pressão arterial, níveis de glicemia, saturação de oxigênio, entre outros, em tempo real e contínuo. Através desses dados é possível detectar arritmias cardíacas, níveis de risco de glicose e hipoxemia, e até mesmo se uma pessoa apresentou uma queda ao solo.
Enfim, parecem ser infinitas as oportunidades de aplicar esses dispositivos em prol de um melhor controle e acompanhamento da saúde de cada indivíduo. Essas tecnologias de acompanhamento de parâmetros funcionais são uma realidade, sendo ainda o grande desafio científico apontar como e quando elas devem ser utilizadas para melhorar a qualidade de vida dos indivíduos. As evidências que demonstraram resultados com este alcance, têm como ponto comum o uso das técnicas de inteligência artificial para que os milhões de dados gerados por essas tecnologias possam ser analisados agilmente e direcionar ações de assertivas. O desafio é identificar o que realmente importa e o que é ruído, ou seja, dado que por si só não acrescenta informação adicional.
Além dos aspectos objetivos de saúde, cada vez mais tem surgido interesse em captar dados subjetivos e relacionados ao bem estar emocional e a saúde mental. Através de aplicativos, participação nas mídias, envio de emojis, por exemplo, é possível relacionar se as pessoas estão mais ou menos felizes, se estão em situação de risco para depressão ou até mesmo suicidio. A coleta de dados na perspectiva do indivíduo sobre a sua saúde, chamados Patient-reported Outcomes (PROMS), sempre foi apontada como essencial no acompanhamento de inúmeras condições de saúde. Eles são muitas vezes mais assertivos em demonstrar o quanto as pessoas estão ou não respondendo ao tratamento, e são marcadores de prognóstico em quase todas doenças clínicas. O desafio com o uso dos PROMS sempre foi a coleta desses dados, pois usualmente envolve aplicação de questionários estruturados, longos e diversos. Com os avanços digitais e da conectividade, os dados de PROMs estão evoluindo para e-PROMS, com automatização e integração dessas informações nos prontuários eletrônicos ou em aplicativos de saúde.
Certamente existem muitos desafios a serem superados para que as inovações possam fazer diferença na saúde dos indivíduos: desafios tecnológicos, -- como acesso a internet de alta performance, aplicativos úteis, interoperabilidade de sistemas -- familiaridade digital e certamente aspectos culturais e sociais. A construção do conhecimento científico com esse arsenal de dados também deve evoluir para assegurar a sua validade e confiabilidade. É preciso que sejam identificadas quais informações são relevantes e que direcionam ações concretas. Nessa trajetória do uso de RWD para mudanças na prática clínica, é fundamental a construção das bases da relação entre as partes, ou seja, entre o paciente e o médico ou sistema de saúde. Estabelecer como as informações serão recebidas, interpretadas e as ações geradas, é essencial para que os ganhos sejam alcançados. Os maiores riscos estão relacionados ao não uso adequado das informações geradas ou criar uma neurose (sofrimento) com a coleta de dados desnecessários.
Referências:
1 - Khozin, S., Abernethy, A.P., Nussbaum, N.C., Zhi, J., Curtis, M.D., Tucker, M., Lee, S.E., Light, D.E., Gossai, A., Sorg, R.A. and Torres, A.Z., 2018. Characteristics of real‐world metastatic non‐small cell lung cancer patients treated with nivolumab and pembrolizumab during the year following approval. The Oncologist, 23(3), pp.328-336.
2 - Rosa, D.D., Bines, J., Werutsky, G., Barrios, C.H., Cronemberger, E., Queiroz, G.S., de Lima, V.C.C., Freitas-Júnior, R., Couto, J.D.O., Emerenciano, K. and Resende, H., 2020. The impact of sociodemographic factors and health insurance coverage in the diagnosis and clinicopathological characteristics of breast cancer in Brazil: AMAZONA III study (GBECAM 0115). Breast Cancer Research and Treatment, 183(3), pp.749-757.
3 - Morelle, A.M., Venero, F.C., Ferreira, R.D., Silva, R.F. and Sant'Anna, P.T., 2021. Abstract PS9-60: Insomnia is the most disturbing symptom during breast cancer treatment: Results from a Brazilian cohort using a patient-reported outcomes: PRO tool-Tummi App. Cancer Research, 81(4_Supplement), pp.PS9-60.
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