Maicon Falavigna MD, MSc, PhD
Sempre que sou convidado a discutir sobre evidência de mundo real (RWE – real world evidence) costumo iniciar com a brincadeira de que se juntássemos dez especialistas para definir o conceito de RWE terminaríamos com vinte definições diferentes. Havendo muitas incertezas sobre as próprias definições e considerando a complexidade inerente a esse assunto, não me atrevo a apresentar diretrizes sobre o uso de dados de vida real em avaliações de tecnologias em saúde (ATS), e muito menos me sinto confortável a provê-las. Como proferido certa fez por Henry Louis Mencken, "Para todo problema complexo, existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada." Assim, em um contexto no qual não é possível apresentar uma solução específica, entendo que o mais prudente seja realizar algumas reflexões sobre o tópico e apresentar algumas alternativas que podem ser utilizadas.
Gosto da definição de RWE como a evidência gerada fora do contexto típico de pesquisa clínica (abrangendo dados de prontuários, dados de faturamento, registros de doenças ou de produtos, dispositivos - ex. wearables e smartphones) mas também aquela gerada por estudos com coleta de dados primários, como estudos observacionais e até mesmo estudos clínicos randomizados pragmáticos. Por exemplo, o estudo RECOVERY consistiu em um platform trial no qual pacientes inseridos no NHS (sistema de saúde britânico), hospitalizados por COVID-19, poderiam participar do estudo; a diferença daqueles que optaram por não participar era praticamente limitada à randomização e à intervenção recebida, recebendo os cuidados preconizados no sistema de saúde do Reino Unido. Nesse contexto, o RECOVERY, se aproxima em muito do que podemos considerar RWE. Por sinal, ensaios clínicos mais próximos à vida real são uma tendência na pesquisa clínica, seja através do desenvolvimento de novas metodologias, como trials adaptativos e em plataforma, seja através da integração com wearables e prontuários para a coleta automatiza de dados. Digno de nota, dados de vida real (RWD – real world data), por sua vez, podem ser consideradas as informações coletadas fora desse contexto típico de pesquisa clínica; uma vez submetidos a um processo analítico apropriado, gerarão RWE.
Em ATS, estamos habituados a utilizar modelos matemáticos, com os quais tentamos definir, por exemplo, custos e/ou consequências de intervenções em longo prazo ou em populações específicas. O que muitas vezes não percebemos é que os ensaios clínicos, em especial os realizados dentro de um contexto de pesquisa clínica tradicional, também podem ser considerados como modelos – são modelos físicos do que esperamos na vida real, cujos resultados pretendemos transpor para a prática clínica. Como limitações comuns desses estudos, os pacientes selecionados e a atenção prestada podem se desviar do que observamos no mundo real, gerando problemas na generalização (também chamada de validade externa) dos resultados. Entretanto, ensaios clínicos são fundamentais para definir a eficácia de uma intervenção, com a randomização sendo a melhor estratégia para evitar confundimento em uma potencial associação, e não espera-se que esses estudos venham a ser substituídos por outras alternativas para esse propósito, ao menos em um futuro próximo.
Assim, devemos ter em mente que a RWE está longe de substituir os ensaios clínicos tradicionais no que tange a determinação de eficácia terapêutica, erro comum proferido por muitos defensores de RWE. Por sinal, a ênfase dada a RWE nessa área é extremamente perigosa, uma vez que negligencia as preocupações sobre erros sistemáticos (vieses) desses estudos. Contudo, há uma ampla gama de potenciais aplicações para seu uso, em especial na ATS, onde a eficácia clínica é apenas um dos domínios de sua avaliação. Seguem algumas dessas possibilidades:
· No campo da eficácia clínica, estudos de vida real servem como evidência complementar aos estudos clínicos, aumentando a validade externa dos resultados, uma vez que permitem avaliar a reprodutibilidade e a consistência de resultados observados em estudos clínicos, geralmente em uma população com um espectro mais amplo, e assistidos dentro dos seus respectivos sistemas de saúde. Em relação à efetividade, por sua vez, a avaliação pós-comercialização de aspectos de segurança permite a geração de dados que por limitação de poder amostral, duração do estudo e espectro da população, não é possível avaliar adequadamente em ensaios clínicos.
· Dados administrativos permitem identificar com maior assertividade custos com a doença sob diferentes perspectivas (pagador, paciente ou a própria sociedade), incluindo a possibilidade de aferir custos indiretos, como os decorrentes de absenteísmo e da diminuição de capacidade produtiva. Além disso, esses dados podem colaborar para entender melhor a jornada do paciente no sistema de saúde propondo melhorias.
· Podemos utilizar dados de registros e prontuários para definir melhor a epidemiologia de uma dada condição, como sua prevalência, incidência, além de consequências como taxas de mortalidade e de hospitalização. Esses dados, em ATS, são fundamentais pois permitem maior assertividade em parâmetros necessários para avaliar o impacto orçamentário da adoção de uma determinada tecnologia, além de auxiliar na definição de prioridades em saúde.
· Informações coletadas diretamente com o paciente, incluindo PROMs (patient-reported outcome measures) e PREMs (patient-reported experience measures), permitem identificar de forma mais ampla e direta os valores e preferências dos pacientes, incluindo suas necessidades não atendidas.
· Informações referentes a infraestrutura dos serviços de saúde permitem avaliar a viabilidade de implementação de tecnologias, assim como direcionar novos investimentos de infraestrutura onde esses se fazem necessários.
Por fim, é importante esclarecer que dados, por si só, são pouco úteis, sendo necessária sua transformação em informação (evidência), para exercer aplicação prática. Estamos em um momento no qual o volume de dados gerados e disponíveis vem aumentando exponencialmente, mas esses dados não necessariamente geram informação. Há quase 70 anos Francis Crick entrou em um bar de Cambridge gritando para os amigos que havia descoberto o 'segredo da vida' (entenda-se, a estrutura do DNA); veio a falecer em 2004 sem ver se materializar as implicações terapêuticas de sua descoberta, de tratamento personalizado a terapia gênica, que por sinal, ainda estão bastante incipientes. O projeto genoma humano precisou de mais de uma década e 3 bilhões de dólares para sequenciar o genoma de um único indivíduo, levando quase outras duas décadas para que seus resultados repercutissem em ganho na saúde da população. O RWD podemos dizer que consiste em um comparar ao tipo de DNA populacional, que vem sendo sequenciado massivamente, sem que tenhamos ainda certeza das suas aplicações futuras e quando elas virão. O processo atual de se trabalhar com esses dados ainda é bastante artesanal, com processos sendo customizados para cada necessidade, o que acaba sendo intensivo em recursos humanos e moroso dentro da celeridade esperada. Iniciativas que venham a qualificar esse processo, abrangendo desde melhor qualidade e padronização de registros, interoperabilidade de sistema e desenvolvimento algoritmos analíticos eficientes, devem ser incentivadas. Por ora, em ATS inexiste um caminho bem definido a ser trilhado em RWE, mas o pior caminho parece ser fechar os olhos para esse assunto e ignorar as potencialidades que a RWE pode agregar no campo da avaliação de tecnologias.
Referências:
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5. Pallmann P, Bedding AW, Choodari-Oskooei B, Dimairo M, Flight L, Hampson LV, Holmes J, Mander AP, Odondi L, Sydes MR, Villar SS, Wason JMS, Weir CJ, Wheeler GM, Yap C, Jaki T. Adaptive designs in clinical trials: why use them, and how to run and report them. BMC Med. 2018 Feb 28;16(1):29. doi: 10.1186/s12916-018-1017-7. PMID: 29490655; PMCID: PMC5830330.
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Declaração de interesses:
Dr. Maicon Falavigna é sócio-diretor da empresa HTAnalyze, que realiza atividades de consultoria e treinamento em ATS, e da empresa Inova Medical, que realiza estudos clínicos e de mundo real com dados primários em saúde. Nos últimos 36 meses realizou atividades recebendo honorários das seguintes instituições com fins lucrativos: Alnylam, Janssen, JCR Pharmaceutics, Merck SA, Merck Sharp and Dohme, Novartis, Pfizer, PTC Therapeutics, Roche, Sanofi, Ultragenyx. Além disso vem trabalhando com o Ministério da Saúde em iniciativas relacionados a avaliação de tecnologias em saúde, diretrizes clínicas, estudos clínicos e de vida real através de projetos do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (PROADI-SUS), junto ao Hospital Moinhos de Vento. O Dr. Maicon Falavigna é pesquisador do IATS-UFRGS, professor adjunto do Department of Health Research Methods, Evidence, and Impact, da McMaster University, e membro do GRADE working group.
O texto aqui apresentado representa a visão do autor sobre o tópico, não tendo influência em seu conteúdo por terceiros.
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